Miguel Lemos Santos

É sabido que existem sempre aspetos da nossa vida em sociedade em que discordamos profundamente uns dos outros. Mas um dos pontos em que a esmagadora maioria dos portugueses estaria de acordo e sem grandes dúvidas seria na forma como o país está dividido e organizado administrativamente: temos um país dividido em distritos, concelhos e freguesias, para além das duas regiões autónomas.

No entanto, ao longo dos últimos anos, esta organização tem vindo a coexistir com um modelo alternativo e desenvolvido a nível europeu, assente em regiões e sub-regiões definidas de forma a constituir unidades territoriais para fins estatísticos, com o objetivo de facilitar a avaliação do grau de desenvolvimento regional e aplicar os fundos estruturais de coesão para promover uma maior uniformidade entre as regiões a nível europeu. Assim, é natural que o Estado tenda a organizar-se de acordo com o novo modelo de organização territorial.

Contudo, a maioria das pessoas ainda não se apercebeu desta transformação e que, na prática, os nossos distritos estão condenados a desaparecem. Isso só por si, poderia ser matéria de discussão sobre as vantagens e desvantagens desta mudança de paradigma, mas esse comboio já partiu há muito, pois a transformação já está a ocorrer. Importa agora é perceber de que forma será realizada a reestruturação das entidades da administração central e quais as medidas tomadas para capitalizar os efeitos positivos e mitigar o impacto negativo da mesma no funcionamento do Estado e na vida dos cidadãos.

Infelizmente, no caso da proteção civil, esta transformação está a tornar-se um exemplo preocupante da falta de preparação e de planeamento na condução do processo, sendo ainda mais grave pela possibilidade de poder vir a comprometer o normal funcionamento do sistema de proteção civil e a respetiva capacidade de implementação políticas de proteção civil, de desenvolver estratégias de prevenção e mitigação de risco e, claro, de dar resposta operacional a acidentes graves ou catástrofes.

Com a criação da atual Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), em 2019, o Governo assumiu a transição dos Comandos Distritais de Operação de Socorro para o modelo regional. Este processo tem evoluído lentamente, com a constituição do Comando Regional do Algarve como piloto do novo paradigma. Na atual proposta do Orçamento de Estado 2022, o Governo reforça a intenção de continuar a investir nesta reestruturação, mas não se vislumbram sinais de estarem a ser tomadas medidas para gerir e mitigar possíveis efeitos negativos que possam comprometer a atuação da proteção civil.

Para se perceber melhor o que está em causa, imaginemos um incêndio florestal que afete os concelhos de Sátão (distrito de Viseu) e Aguiar da Beira (distrito da Guarda), ambos pertencentes à sub-região Viseu Dão Lafões. Nesta situação, e no novo modelo da ANEPC, o Comando Sub-Regional de Viseu Dão Lafões teria de se articular com ambas as Comissões Distritais de Proteção Civil de Viseu e da Guarda e respetivos Centros de Coordenação Operacional Distritais. Teria ainda de fazer o mesmo também ao nível da GNR e outras entidades de apoio organizadas ainda no modelo distrital. Como é que isto torna o sistema de proteção civil mais eficiente?

Também na perspetiva municipal serão criadas situações sem nexo. Usando o exemplo acima referido, na nova lógica da ANEPC o município de Aguiar da Beira teria de se articular operacionalmente com o Comando Sub-Regional de Viseu Dão Lafões, mas integraria a Comissão Distrital de Proteção Civil do distrito da Guarda para questões de política de proteção civil. Mais uma vez, como é que esta medida torna o sistema mais eficiente?

A verdade é que esta situação poderá vir a acontecer e resulta de um simples facto: o Governo avançou para a alteração da orgânica da ANEPC sem rever e atualizar previamente a Lei de Bases de Proteção Civil, a qual define a estrutura e o funcionamento do Sistema de Proteção Civil nas suas diversas funções: direção e coordenação política, coordenação institucional e comando operacional. Como tal, teremos as várias estruturas de proteção civil a trabalhar sobre uma dualidade, precisamente num setor do Estado onde este tipo de dualidade não pode acontecer, sob pena de se verificarem falhas na resposta à emergência e, como é tradição em Portugal, impossibilitar o apuramento de responsabilidades sobre essas mesmas falhas.

Em suma, estas são apenas algumas questões para as quais ainda não se vislumbram respostas claras e satisfatórias. O atual sistema de proteção civil é, assim, mais um dos vários sistemas do Estado que requer uma reforma urgente e profunda. O processo de transição para o modelo territorial assente nas regiões é apenas mais um exemplo da falta de preparação com que o atual Governo avança para medidas com impacto estrutural. É um exemplo que afeta o setor da proteção civil, mas também tantos outros processos de modernização e simplificação da máquina do Estado e que geram precisamente resultados contrários ao que é anunciado. Resta perguntar, uma vez mais: de que forma é que esta governação torna Portugal num país melhor?

Artigo de Miguel Lemos Santos

 Consultor de Proteção Civil – militante da Iniciativa Liberal